Zita Vladinovska
é a mais nova de três irmãos e a única que mora com sua mãe. O pai morreu
quando a filha era ainda uma menina, o que contribuiu para que a mãe não se
casasse novamente. Viviam com uma parca pensão que supria suas necessidades
básicas, além do trabalho de Vladinovska, e que as fazia manter a tradição de
interioranos (almoços periódicos em família, festejos de datas especiais, casa
florida). A mãe era uma senhora cumpridora de seus deveres para com a religião
e para com o cuidado da casa. Os filhos eram seu maior tesouro, apesar de fria
e distante com eles. O básico (boa educação e firme senso moral) ela lhes dera,
o resto que eles buscassem por conta própria.
Boa
educação e senso moral, quão raro isso hoje em dia!
Era uma
quarta-feira cinzenta. O rádio anunciava pelo serviço meteorólogico que iria
chover no fim da tarde. Vladinovska acordou bem cedo como de costume, tomou
apenas café, feito por sua mãe que o preparava antes de a filha se levantar, e
rumou para o trabalho a 40 minutos de casa. O ônibus, como sempre pela manhã, estava
lotado, mas nesta quarta-feira isso não a importunava, pois seria o dia em que
ela trabalharia apenas até o almoço (dia de fechamento de contas, meio dia de
folga para a recepcionista). Durante o percurso, Vladinovska observou o quanto
uma cidade arborizada era bonita. As árvores vistosas e os jardins floridos que
dividiam as avenidas davam a quem os observava uma agradável sensação de
bem-estar. Ela fazia questão de se
concentrar em cada pedaço da paisagem urbana, observando detalhes e ângulos que
podem revelar lugares despercebidos no corre-corre do dia a dia. Passavam-lhe pela cabeça os versos do português Fernando Pessoa, cujo livro de poesias
um tio lhe dera, versos que ela levaria in
perpetuum na memória: “O essencial é saber ver,/ Saber ver sem
estar a pensar,/ Saber ver quando se vê,/ E nem pensar quando se vê/ nem ver
quando se pensa”. Se estava a olhar para fora do ônibus, ela só pensava em
se concentrar no que via, que nada mais
importasse.
Quando
chegou ao trabalho, seu chefe já estava tomando o café e cobrando por telefone
o cumprimento dos anúncios nos jornais. O bom-dia foi seco e distante. Ela
dirigiu-se a sua mesa que fica na sala ao lado da dele e pôs-se a organizar os
trabalhos daquela manhã que certamente demoraria a passar. Não demorou. Eram
12h quando Vladinovska já estava dispensada para ir para casa. A manhã passou
mais rápido que de costume. Havia poucos afazeres, a empresa de anúncios recebera
poucos clientes. Todos no escritório estavam voltados para o balanço anual.
A volta foi
tranquila. Como de costume, o rush
propriciou à Vladinovska uma longa viagem nos braços de Morfeu. Era
impressionante o efeito que esse horário provocava na moça. Após o almoço, a siesta era necessária, invariavelmente
todos os dias. No escritório era um pouco difícil obedecer a esse rigoroso
horário biológico, mas não impossível. Raramente os demais funcionários, assim
como seu chefe, almoçavam aí. Ela aproveitava o silêncio do horário e tirava um
cochilo rápido, de vinte minutos a meia hora, o que equivalia em valor a uma
noite de sono.
Chegou
enfim a casa. A boa comida caseira é para poucos e Zita Vladinovska poderia se
considerar uma afortunada, pois sua mãe tinha mãos mágicas, sabia cozinhar
maravilhosamente. Nascida na pequena cidade interiorana de Holambra, a uns 120
km da capital São Paulo, a mãe aprendera com os seus a cozinhar o melhor da
comida brasileira e da comida holandesa, da qual se sobressaiam arroz, feijão,
farofa de milho, batatas, carne de porco, além de pratos especiais da Holanda,
país de seus ascendentes (como o Ayam
Kerrie ou frango ao curry). Holambra, cidade onde nasceram Vladinovska e
sua família, é famosa pelas flores que cultiva. Daí um hábito que a família
levava onde quer que residisse. Toda a semana, a mãe repunha o jarro de flores
que ficava na mesa no centro da sala de jantar, com flores as mais coloridas,
que traziam à lembrança sua infância de trabalho e cultivo.
Após o
almoço, Vladinovska ajudou a mãe nos afazeres da casa, dirigiu-se ao quarto
para leituras e para pensar em como aproveitaria o resto do dia de folga. Algo a
inquietava. Decidiu ir ao cinema no final da tarde. Assim foi. Eram quatro
horas quando entrou no ônibus rumo ao cinema a umas 10 quadras de casa. O dia
estava cinzento, típica cor dos dias de outono. As árvores tinham um verde
característico, meio cor de musgo, o amarelo dos ipês do trajeto realçavam a
beleza dessa cor, como isso era prazeroso de se ver... Um belo dia a ser
vivido.
Mas não
para Zita Vladinovska. Um mal-estar perpassava-lhe as entranhas e
nada em que ela pensasse quietava seu espírito. Ela pressentia que havia algo
errado na condução de seu destino. Ela não se enganara. Apesar de ainda não se
ter chegado a uma conclusão definitiva sobre a intuição, o fato é que ela é
inata a todos nós. Tal qual os irracionais que sempre estão a postos na
defesa da própria vida, pressentimos que algo que envolve a sobrevivência está
para acontecer. E ramente nos engamos.
A seis
quadras de chegar ao ponto em que teria de descer para ir ao cinema.
Vladinovska percebeu que o ônibus em que estava era seguido por um carro. A atitude do veículo ao lado do seu era de
causar estranheza, sempre as mesmas paradas, sempre a mesma velocidade. Numa
das paradas, ela percebeu que seu temor era compartilhado, o olhar do cobrador
ao ver três homens que, saindo do carro ao lado, entraram em seguida no ônibus,
era assustador. Tais homens entraram no ônibus em que estava Vladinovska, passaram
a roleta e anunciaram o assalto.
Em
princípio ela pensou que fosse uma brincadeira, uma brincadeira de muito mau
gosto como as milhares que existem no mundo. Aqueles três homens que não tinham
muito mais que seus vinte e poucos anos só podiam estar pregando uma peça em
alguém para depois anunciarem um pedido de casamento, um aumento de salário,
uma brincadeira televisiva. Não podia ser verdade que seus pertences seriam
levados, que ela e os demais passageiros corriam risco de morrer porque um
bando de ensandecidos resolvera tomar o ônibus em que estava de assalto. Mas
era verdade. Ela estava confinada numa caverna escura na selva a fugir de uma
fera. Os movimentos dos bandidos eram rápidos, pois estavam nervosos e queriam
terminar logo o serviço. Iniciaram a busca por objetos de valor e dinheiro na
entrada do ônibus, tudo o que recolhiam era colocado num saco. Em minutos
metade dos passageiros haviam entregue seus pertences, seus objetos de valor,
haviam tido sua privacidade invadida. De súbito, um dos passageiros mexeu
bruscamente na bolsa, foi o bastante para uma bala certeira romper-lhe as veias
do coração e matá-lo fulminantemente. Esse homem sentava-se ao lado de
Vladinovska, que gritou aterrorizada, um dos bandidos voltou-se para ela e disse
que, se continuasse a gritar, iria estourar-lhe os miolos. Queda ela ficou,
queda olhou o morto ao seu lado, queda viu que havia sangue em sua camisa florida.
Quando
os ladrões desceram do ônibus correndo e dirigiram-se ao carro em que estavam,
Vladinovska agradeceu a Deus a vida que lhe restou. O alvoroço no ônibus era tamanho. Ao sair daí, ela pensou em que decisão tomar, não fez questão de ir à
delegacia prestar queixa, dar depoimentos etc., não tinha força física nem
espiritual para isso, estava desolada. Fez a única coisa que lhe restava fazer:
ir para casa a pé sob a chuva fina e incessante que caía.
Referência:
MUNCH, Edvard, O Grito (Skrik),
1893.